SALOMÔNICAS
Farsa Juriverídica
Marcus Mota
2016
Figuras
da peça
VELHO SALOMÃO
JOVEM SALOMÃO
RAINHA DE SABÁ
ASSISTENTE RAINHA DE SABÁ
CORO DE MULHERES (Harém)
CORO DE HOMENS (Trabalhadores)
CRONISTA (Vestido de Palhaço)
HIRÃO
PAI DOS BOBOS
Entrada
do público. Abertura instrumental da construção/trabalho escravo. Ao fundo
projeções de grandes obras públicas inacabadas e de trabalho escravo. Sopra uma
ventania.
Cena
I
Ambiente
enfumaçado, Salomão velho, paciente terminal em um quarto de hospital público.
Ele está com sondas enfiadas em suas veias, sentado em uma cadeira giratória,
com roupa hospitalar. Ele olha com raiva para frente. Atrás dele surgem os sons
de uma algazarra - um grupo barulhento que entra e sai da cena tocando tambor e
sopros, gritando o nome do velho rei: Sosô! Salô! Sosô! Salô! Depois de um
tempo, o velho ergue lentamente seu braço, o sangue escorrendo em seus braços
lívidos. Ele tenta agarrar a fumaça, que escapa entre os seus dedos. Depois de
um tempo desiste e fala, mostrando a boca velha, suja, dentes amarelados- o
cadáver insepulto.
VELHO SALOMÃO
Bo-ba-gem! Tudo uma imensa bobagem!
(Sopra um vento forte. O grupo barulhento entra como se tivesse sido
lançando pelo vento. Eles se apoiam na cadeira do VELHO SALOMÃO e a giram. Depois
de um tempo tudo se torna um grande número de festa. Canção da Sabedoria)
Canção
da Sabedoria[1]
Cena
2
Interior
luxuoso de um escritório de advocacia, mas tudo ainda dentro do quarto de
hospital. Uma mesa de negócios aos centro. Atrás uma jaula com mulheres
seminuas. O que acontece agora é uma mistura de reunião de negócios com um
jantar fino. Salomão sentado em sua cadeira-trono, cercado por seus executivos.
A cadeira-trono está mais elevada. Colocam sobre ele um casaco de terno sobre
as roupas hospitalares. São projetados tabelas, balancetes, gráficos, assim
como imagens de riqueza de ostentação: haras, iates, banquetes, malas de
dólares, orgias. Junto com isso, temos interferência de imagens de desgraças
típicas decorrente da corrupção: filas em hospitais, manifestações sendo
reprimidas com violência policial, gente pedindo dinheiro, miséria. Fala a RAINHA DE SABÁ. A mulher está
montada com roupas multicoloridas e caras. Ela está com seus executivos também.
RAINHA DE SABÁ (exagerada, apaixonada... pelo
poder. Folheia os relatórios. Ao falar, vai ficando cada vez mais catatônica,
um zumbi de Salomão)
Eu... eu... eu estou sem palavras! Nem
consigo respirar! Nossa empresa de auditoria constatou que de fato tudo é
verdade. Está aqui nos relatórios! É inacreditável! Mas está tudo certo! Eu
vejo com meus próprios olhos! É isso e muito
mais!
ASSESSOR DA RAINHA DE SABÁ
Havia uma grande dúvida sobre a veracidade
das informações. Mas a contabilidade está ok, toda a documentação correta!
RAINHA DE SABÁ
Esse seu negócio aqui é fabuloso! Está em
plena expansão! Todos trabalham, ninguém reclama, e você está cada vez mais
rico!
ASSESSOR DA RAINHA DE SABÁ
Os números são impressionantes! Novos
clientes nacionais e internacionais, novos processos, leis, mercadorias indo e
vindo sem parar. Uma maravilha!
RAINHA DE SABÁ
E todo mundo aqui tão feliz, todo mundo
tão satisfeito.
ASSESSOR DA RAINHA DE SABÁ
Trouxemos uns presentes pra você, pra mostrar
nossa admiração. ( Os assessores da Rainha de Sabá se viram e mostram suas bundas
sujas, marcadas de chicote, sangrando).
RAINHA DE SABÁ ( tirando sua roupa e indo
beijar Salomão)
Você é um homem muito sábio, Sosô. Eu vi
tudo! Que sorte tem essa gente que trabalha pra você! E as suas mulheres! Como
estão felizes! (SALOMÃO bate palmas e
entram empregados carregando os pratos para o banquete. Entram bandejas com
pedaços inteiros de animais (cavalos, macacos, girafas), maços de notas de
dinheiro e acessórios sexuais. Abrem a jaula com a mulheres. Elas chegam como
zumbis, mulheres violentadas, abusadas sexualmente. A RAINHA DE SABÁ vai ao
encontro delas. Elas se dirigem para a platéia em um andar lento, para que sua
desgraça seja melhor observada. Black-out.
Cena
3
Apenas
a cadeira no ambiente hospitalar. Salomão está como que morto na cadeira. Foco
nele. Um locutor anuncia o próximo número do show: entra um jovem comediante
Salomão. Stand Up. Uma bateria acompanha o número do jovem Salomão. Enquanto
isso, o morto Salomão sincroniza seus movimentos com os do som da bateria)
LOCUTOR (voz em off)
And now, ladies and gentlemen, a história
de como tudo começou.
JOVEM SALOMÃO
Sabe Deus, o todo poderoso? Pois é,
guardei no bolso! (Bateria. Risadas pré-gravadas). Foi assim: a vagabunda da
mamãe falou com o doente do meu pai: eu seria o próximo na empresa. Grandes
merda! Então eu tinha que mandar matar
uns caras e sorrir. As pessoas precisam me amar, eu precisava que as pessoas me
amassem como mamãe e papai. Um dia, de noite, eu tive um sonho. Tava dormindo e
Deus veio falar comigo. Ele me perguntou assim: "Rapaz, o que você quer da
vida: mulheres, dinheiro, poder!" Porra, eu tava dormindo na minha cama.
Eu sou a porra do herdeiro. Tive tudo do bom e do melhor e agora Deus vem aqui
na minha casa me oferecer alguma coisa que eu já tenho? Me deu uma raiva
naquela hora. Mas deixa quieto. Vai ter troco. Olhei firme na cara daquela
nuvem e disse: "Apenas dá-me sabedoria para governar o povo com justiça e
saber a diferença entre o bem e o mal". (Para o Cronista) Escreve aí,
palhaço! (Para a platéia) Essa nem Deus esperava! Deve ter pensando: "Porra,
o que ele quer dizer com 'dá-me sabedoria'." Enquanto a nuvem se contorcia
em dúvidas, eu peguei o bicho pelo pescoço e fui mandando ver: " Jura que
vai me ajudar! Jura que vai atender meu pedido!" A nuvem se debatia,
querendo escapar. Aí mandei a banda tocar o mais alto possível, até o bicho se
entregar na minha mão. ( A banda do início volta a tocar sua balbúrdia. Salomão
no auge grita para a Banda:) Chega! (Para ao Público) Depois dessa tortura, a
nuvem agonizando cedeu :"Porra: você vai ter o que você pediu - sabedoria,
inteligência, esperteza, como nenhum outro teve antes de você, nem terá depois.
" Agora era eu, minha gente! Eu! Todo mundo ficou sabendo disso. Se Sosô
podia com Deus, quem seria contra Sosô?!
Cena
4
Saem
duas mulheres da jaula de mulheres. Eles disputam a tapa um bebê recém
nascido. Homens a arrastam perante o
rei. Ele perde a paciência sai de seu trono e dá um tapa em uma mulher e beija
a outra. Tira o bebê delas e entrega para um soldado que segura o bebê pelos
pés.
JOVEM SALOMÃO
Calma, putada! Calma. (Descasca uma
laranja) Qual a fofoca?
CRONISTA
"Segundo os autos, a vagabunda
requerente número 1 acima supracitada, caralho, informou que coabitava com sua
colega no mesmo endereço, cama e edredom quando ambas engravidaram ao mesmo
tempo de seus filhos que nasceram na mesma hora, dia, mês e ano, agora sendo
quatro os moradores da casa, fora os eventuais fiadores e putanheiros
ordinários- lista enorme aqui. Mas uma noite uma delas dormiu e rolou sobre uma
das crianças, matando-a por sufocamento com dolo e sem dolo, sem consolo, coisa terrível de ser ver e ouvir. Pobre
criança pobre!
JOVEM SALOMÃO (levanta-se, andando com as
mãos para trás, circunspecto)
Atente-se aos fatos e à lei, cronista!
CRONISTA
Então a que ficou sem filho levantou-se no
meio da noite e trocou os bebês: o morto foi pra outra; o vivo, junto de si.
JOVEM SALOMÃO
Não me diga que ela rolou e matou o outro
também( Tapa na cara da mulher) Idiota!
CRONISTA
No dia seguinte a mulher acordou e foi dar
de mamar para o bebê.
JOVEM SALOMÃO
E então o bebê engasgou, sufocou. ( Tapa
na cara da mulher) Estúpida!
CRONISTA
Não. Ela viu então que o bebê estava
morto, que não era dela.
JOVEM SALOMÃO
Mas como assim? Não entendi nada. Conta
essa história direito! ( Tapa na cara do cronista)
MULHER 1
Foi ela! Ela quem matou meu filho!
MULHER 2
Mentira! Sou puta, mas não assassina. Foi
ela! Foi ela!
JOVEM SALOMÃO
E agora o que vocês querem que eu faça?
Cadê o problema?
CRONISTA
É crime de sangue, senhor, é grave.
JOVEM SALOMÃO
Sei, sei ... Deixa me ver. Quem matou
quem? Cadê o corpo?
MULHER 1
Você me conhece, Sosô. Você me conhece
bem...
JOVEM SALOMÃO (tapa na cara)
Sai, sai, desencosta.
MULHER 2
Você conhece todas nós.
JOVEM SALOMÃO ( tapa na cara
Parem com isso! Cronista, o que você acha?
CRONISTA
Um caso difícil. Elas moravam sozinhas,
não há testemunhas.
JOVEM SALOMÃO
Então me tragam o bebê. E me dêem uma
espada.
MULHER 1
Isso. Corta a criatura ao meio. Assim
resolve isso logo.
JOVEM SALOMÃO ( Descascando a laranja com
espada. Fala com o bebê)
Fale, abra o bico: você viu tudo. Quem
matou o teu irmão?
CRONISTA
Mas, senhor, é apenas...
JOVEM SALOMÃO ( Tapa)
Calado! Todos sabem que Deus me tornou o
homem mais sábio de todos, capaz de fazer justiça como ninguém. (Para o bebê,
ameaçando com a espada) Fale, moleque. Foi você? Confesse!
MULHER 2
Por favor! Não mate o meu filho! Pode
entregar para a outra mulher!
JOVEM SALOMÃO
Caso encerrado. O bebê agora é meu.(Joga a
laranja fora e abraça a criança) Gostei dele.(Depois joga a criança fora)
Mandem essas mulheres pro meu harém. Todos no futuro vão se lembrar do dia de
hoje. Sabedoria e justiça para todos. (O coro celebra a decisão de Salomão)
Canção
do imbecil
Cena
5 (Entra um sujeito bem gordo, suado, passando o lenço na testa. É Hirão)
JOVEM SALOMÃO (Como uma criança vai
abraçar forte o Hirão)
Hirão, gordão, amigãozão! Meu irmão: há
quanto tempo!
HIRÃO
Calma, moleque: agora você é rei!
JOVEM SALOMÃO
Hirãozão, gordão: como eu amo esse cara!
HIRÃO (afastando o JOVEM SALOMÃO
Idiota! Me escute: Teu pai te mandou
construir um monte coisas, entendeu? Eu sempre ajudei teu pai, lembra? Então
vamos continuar trabalhando juntos, tudo bem?
JOVEM SALOMÃO
Claro, Hirão, meu irmãozão! Fifty fifty! Fifty
fifty! Hirão gorduchão!
HIRÃO
Quieto, moleque! Tudo tem que ser bem
feito! Eu tô com um monte de gente nesse negócio. Presta atenção: tô trazendo a
madeira e as pedras, tudo da melhor qualidade. Os homens dia e noite vão
carregar e descarregar os caminhões. Os mestres-de-obra e os operários, meus
engenheiros e arquitetos todos disponíveis pra você. Isso aqui vai demorar anos, anos. Por isso eu
preciso de você nisso o tempo inteiro. A gente vai se dar muito bem. Do seu
lado, você cuidado pra tudo sair certinho, aprovando os projetos, as obras. Eu
entro com o trabalho e você com a lei. A gente é irmão, família!
JOVEM SALOMÃO
Tudo que você quiser, HIRÃO grandalhão!
Fifty fifty! Fifty fifty!
HIRÃO (imagens de construções projetadas.
O movimento dos coros como escravos trabalhando)
Então ao trabalho! Todo mundo: vamos refazer
a cidade, uma cidade nova. Construir um palácio, o melhor e maior palácio! Teu
pai iria ficar orgulhoso! Um palácio não: um complexo de construções: um lugar
para as festas, um salão enormes para receber os visitantes. Uma casa luxuosa
pra você morar. Um hotel de luxo para as suas mulheres. E um salão enorme pra
você se mostrar como reto juiz, julgando as causas e as pessoas. E pra esses
salões e casas tudo de bom e do melhor: os melhores móveis, os melhores
materiais, tudo o que for belo, caro e único.
JOVEM SALOMÃO
Eu quero do melhor, Hirão meu irmão! Eu
sempre tive do melhor. Fifty fifty! Fifty fifty! E quero um zoológico com
leões, macacos e pavões, e um lago artificial gigante e.. e... uma ponte, uma
ponte pra lugar nenhum! E também um muro
em volta da cidade, um muro que nunca acabe de tão grande. E muitos automóveis, todos que eu puder
comprar e ganhar! Eu adoro carros, Hirão grandão! Ah como eu adoro!
HIRÃO
Mas... mas onde você vai guardar esses
carros?
JOVEM SALOMÃO
Fifty fifty, Hirão, Fifty fifty: Vou
transformar as cidades em volta em estacionamentos! Todas as cidades vão virar estacionamentos
pros meus automóveis. Anota aí nessa plantas: vamos reconstruir as cidades que
meu pai destruiu. Vamos destruir tudo e
construir de novo!
HIRÃO
E quem vai dar duro, trabalhar nisso por
horas e horas todos os dias o tempo inteiro?
JOVEM SALOMÃO
Quem? Quem? os filhos da putada! Todos
eles! Vão trabalhar pra mim todos os dias de suas vidas, sem pausa, sem
reclamação, sem receber nada, só comida, e comida a mais barata que houver. E vão
homens e mulheres felizes, a putada toda suja de terra, as mãos feridas, a boca
sem dentes, todo mundo rindo e se mijando de alegria enquanto apanham nas
costas e trabalham pra mim. Pois eu, Salomão fifty fifty debati com Deus e
venci. Se perder pra essa gente, vou empatar com quem?!!!
HIRÃO( rindo)
Ah, Salomão! Você é mesmo um idiota, um
completo idiota! Mas há sabedoria nessa loucura (Rindo) Vamos ficar anos e anos
nessa patacoada!
Canção
de trabalho. As obras sem fim.
Ao
fim da canção sopra uma ventania e volta
VELHO SALOMÃO
Cena
6
Ventania.
Quarto de hospital público. Ambiente enfumaçado, Salomão velho, paciente
terminal em um quarto de hospital público. Ele está com sondas enfiadas em suas
veias, sentado em uma cadeira giratória, com roupa hospitalar. Ele olha com
raiva para frente. Sons de ventos e de respiração humana. Depois de um tempo, o
velho ergue lentamente seu braço, o sangue escorrendo em seus braços lívidos.
Ele tenta agarrar a fumaça, que escapa entre os seus dedos. Depois de um tempo
desiste e fala, mostrando a boca velha, suja, dentes amarelados- o cadáver
insepulto. Instrumental Valsa do tempo
VELHO SALOMÃO
Bo-ba-gem! Tudo uma imensa bobagem! (Volta
a tentar em vão segurar a fumaça). Um homem, um animal... qual a diferença? E o
grande sábio e o idiota - onde estão agora? No futuro, ninguém vai se lembrar
de ninguém. Nada permanece. Bo-ba-gem! Tudo uma imensa bobagem! (Volta a tentar
em vão segurar a fumaça). Uma hora você planta pra depois arrancar pra comer.
Você tem que falar e então depois ficar calado. Você pode rir, rir até ficar cansado,
mas uma hora você vai parar, chorando. Então você se levanta e corre e dança, e
em seguida você cai, e se aquieta e dorme. Há tempo para todas as coisas. E o
que que se ganha com isso? O que aconteceu um dia vai acontecer de novo. Meus
bolsos estão vazios agora. Bo-ba-gem! Tudo uma imensa bobagem!
Cena
7
Festa
no palácio. Torneio dos sábios. Estrutura de uma Missa ao avesso
LOCUTOR (voz em off)
And now, ladies and gentlemen, o torneio
dos sábios, festa stultorum, fatuorum,
follorum!
Entram
sob uma melodia fúnebre os competidores: a deusa da sabedoria, o rei dos bobos,
o arauto da sabedoria, o marido traído, a mulher mazinha, o pai dos bobos. Nessa
procissão cada um dos competidores carrega um símbolo de sua figura:
A
deusa da sabedoria: um livro/ falo
o
rei dos bobos, um cetro/falo
o
marido traído: um par de chifres/falos
o
arauto da sabedoria: uma trombeta/falo
a
mulher mazinha: uma vassoura/falo
o
pai dos bobos: uma vara/falo
O
primeiro a falar é o Pai dos bobos
PAI DOS BOBOS (Procurando seu filho em
meio a todos, desesperado. Muito exagero. Ao seus pés, tem um cachorro de
pelúcia na coleira. )
Meu filho, meu filho: escute o que teu pai
te ensina, presta atenção no que ele diz. Eu tenho conselhos pra você viver
melhor e sofrer menos. Você é jovem, um idiota. Alguém chega e diz : "vamos
comer merda e queimar dinheiro! É divertido!" Meu filho, não faça isso dentro
de casa. Por favor. Se outro disser "Raspe sua bunda, que eu raspo a
minha" cuidado outra vez! Tô cansado de catar os pêlos do sofá. Fique
longe dessa gente. Eu sou pai, e você, meu filho e vice-versa. Mas vê se vira
homem, pelo amor de Deus, porra!
ARAUTO DA SABEDORIA (invadindo a cena do
PAI DOS BOBOS)
Gente louca e esquecida, ouçam: a
Sabedoria está gritando pelas ruas, buscando alguém que a siga. Ela corre de
pés descalças e roupas transparentes. Por duas vezes ela tropeça e cai, sangue jorra
de seus joelhos. Mas ela se ergue e vai adiante, e perguntando por uma
farmácia. Não dá pra entender muito o que ela diz, pois há sangue também em sua
boca. E há sangue em suas mãos e nas unhas dos pés. A Sabedoria continua a
gritar, mas ninguém pára pra ouvir: é por quê Sabedoria acaba de tropeça de
novo, rolando ladeira abaixo.
DEUSA DA SABEDORIA
Eu gritei por vocês e você não me ouviram!
Eu chamei e você me rejeitaram! Quando o pior vier, eu vou rir de vocês. Quando
vier a chuva e a tempestade e os raios, e os trovões, e os ventos, e os
terremotos, e as estrelas do céus, e o tufões de planetas, e as galáxias em
fúria, e as abelhas e os zangões e as formigas, e os chacais, as hienas e os
lobos, isso, os lobos-lobos-lobos, então quando vier todo mundo, e mais a chuva
e a tempestade e os raios-raios-raios, e as formigas, e as galáxias do mundo
inteiro, e as notícias dos jornais, e flora e a fauna estúpida, e o estado
sólido, líquido e tempestuoso de todos os minerais, e a bursite dos anjos, e a coqueluche
dos demônios, então, meus amigos, vocês que não meu ouviram quando eu gritei
por vocês, eu, a deusa da sabedoria, a grande e infinita deusa da sabedoria,
que chamei e vocês me rejeitaram, eu pedi e vocês foram embora, então quando a
tempestade, e os raios, e a chuva, ah, a chuva, o pior de tudo é a chuva, a
chuva não, caralho! a chuva e os raios, a chuva-chuva, e as abelhas, e os
chacais, e as notícias dos jornais, e fauna, flora e a rima, então, e as
galáxias, vocês sabem bem, vocês já perceberam que então eu vou rir de vocês(
Risada) A grande e infinita deusa da sabedoria vai se acabar de rir( risada).
Essa louca aqui vai partir a cara no chão de tanta gargalhada( risadas ) Vocês
vão me procurar, chamar pelo meu nome, mas não vão me encontrar, eu não vou
responder. Vocês vão ter medo pra sempre. Eu gritei, gritei e vocês não me
ouviram. Agora é tarde. Tô rouca, rouca!(tosse). Olha a chuva aí, minha gente!(tosse.
Fala cada vez mais rouca) Eu odeio lobos-lobos-lobos! E as abelhas...
JOVEM SALOMÃO (Interrompe a procissão)
Chega! Mas será a puta que pariu! Essa é a
pior festa que eu fui! Acabem com isso e vamos para as disputas. Eu vim por
causa das disputas. ( Para o Rei dos bobos) Tira essa merda daí. (troca de
roupa) Deixa eu começar:
"Quem já pegou o vento com as mãos?
Quem já embrulhou água num guardanapo?
Quem sabe onde começa o céu e a terra termina?"
CORO
Solidão, solidão: sou pior que um animal
animal, animal, mostra a cobra e chupa o
pau.
JOVEM SALOMÃO
Quem faz a leis por acaso não consegue o
quiser?
Quem nasceu bem nascido por acaso não vai
ajudar outro igual?
Quem sempre teve o que quis não é melhor
para conseguir muito mais?
CORO
Solidão, solidão: sou pior que um animal
animal, animal, mostra a cobra e chupa o
pau.
JOVEM SALOMÃO
A sanguessuga tem duas filhas: me dá, me
dá logo essa merda
Há três coisas no mundo que me causam
nojo:
alguém que me estende a mão,
a cara suja de quem estende a mão
o horror que sai de sua boca.
CORO
Solidão, solidão: sou pior que um animal
animal, animal, mostra a cobra e chupa o
pau.
JOVEM SALOMÃO
Bater o leite: manteiga
bater o nariz: sangria
muita comida: caganeira.
Há cinco coisas no mundo que todo mundo
admira:
uma não lembro, outra sei que tem a ver
com sacanagem.
Mas a melhor é me ver andando. (Ele tenta
mostrar seus andar de soberano, todo atrapalhado)
E pra terminar, o que mais odeio no mundo:
que não gostem de mim,
que não façam o que eu digo
que não sigam as leis que escrevi
que se intrometam nos meus negócios.
Não se meta no meu, que eu meto no seu!
Cronista, anote tudo e embeleze o que eu
disse. No futuro, todos vão me entender.
Soldados, esfolem esse idiotas! ( Homens pegam e levam embora na porrada
as figuras da festa dos bobos: a deusa da
sabedoria, o rei dos bobos, o arauto da sabedoria, o marido traído, a mulher
mazinha, o pai dos bobos.) Semana que vem, outros atores!
Cena
8
Ventania.
Novamente quarto de hospital público. Ambiente enfumaçado, Salomão velho,
paciente terminal em um quarto de hospital público. Ele está com sondas
enfiadas em suas veias, sentado em uma cadeira giratória, com roupa hospitalar.
Ele olha com raiva para frente. Sons de ventos e de respiração humana. Depois
de um tempo, o velho ergue lentamente seu braço, o sangue escorrendo em seus
braços lívidos. Ele tenta agarrar a fumaça, que escapa entre os seus dedos.
Depois de um tempo desiste e fala, mostrando a boca velha, suja, dentes
amarelados- o cadáver insepulto. Instrumental Valsa do tempo
VELHO SALOMÃO
Então resolvi me divertir e gozar a vida.
O melhor que a gente faz é comer e beber, gastar tudo que for possível. A gente
bebendo, esquece de tudo. Comendo, tudo volta, mas sem tristeza.
Tudo que eu quis, eu tive; tudo que
peguei, joguei fora. Eu não sabia que as coisas já estavam definidas, que meu
papel era de ser o que fui e acabar assim. Bobagem... Tudo bobagem... Pura
perda de tempo até pensar nelas. Tudo
que eu fiz não trouxe nada além daquilo que era minha parte. Um outro vai tomar
meu lugar. O rei e o escravo, o sábio e
o tolo todos juntos agora aqui comigo. Odeio tudo isso, viver e acreditar, um
imenso esforço pra nada. Bobagem... Tudo bobagem...
Cena
9
Jardim
das delícias. Ao som de quarteto de cordas Salomão indo atrás de suas mulheres.
Ele está de joelhos, como um bebê. O espaço é de um quarto infantil. Jogo de
esconde-esconde. Ecoam frases:
MULHER
Seja meu rei: me leve pra cama:
Me cubra de beijos com tua boca
HOMEM
Como você é, linda, garota:
teus olhos brilham de amor!
MULHER
Eu sou a rosa dos campos,
o lírio dos vales:
me leve pra tua casa.
HOMEM
Tenho colares pro teu pescoço,
e vinho pra tua boca suave.
Você sabe onde me encontrar.
MULHER
Meu homem fala comigo,
ele me chama e eu vou.
Eu sou dele, ele é meu
Em seus abraços me abraço.
HOMEM
Vamos à caça, é noite alta.
Vamos à caça, que'eu tenho fome
Ela se escondeu assustada em uma rocha
Ela fugiu com medo de mim.
MULHER
Acordei sozinha, a casa desarrumada.
Meu amado saiu para caçar.
Noites e noite procuro seu cheiro
meu amado corre pelas ruas da cidade.
HOMEM
Eu subi as montanhas mais cheirosas,
eu desci pelos caminhos cheios de curvas
E cheguei ao jardim das delícias
as fontes que jorram flores e mel.
MULHER
Quem vem lá montado em seu cavalo
ventania voraz de cores e cheiros?
Meu amado chega com força
armado para a guerra.
HOMEM
Eis que bato à porta, meu amor:
abra, abra agora!
MULHER
Ouvi o coração dele batendo,
HOMEM
Estou molhado do sereno,
preciso entrar.
MULHER
Volte amanhã, é tarde!
HOMEM
Eu quero é agora, mulher!
Vamos, vamos dançar.
tuas curvas são preciosas.
Da tua boca caem pedras de brilhantes.
Teus seios sãos as torres de meu castelo.
MULHER
Então venha, as flores estão se abrindo.
Vamos passar a noite no jardim.
Eu sou tua agora.
(ENTRA HIRÃO, INTERROMPENDO TODA ESSA
FÁBULA DO ESTUPRO. HIRÃO PUXA O JOVEM SALOMÃO DE SUA BRINCADEIRA PARA A
REALIDADE).
Cena
10. a delação premiada de Hirão
HIRÃO
Seu filho duma puta! Traidor de merda!
Depois de tudo que eu te fiz!
JOVEM SALOMÃO
Mas...mas Hirão, amigãozão, meu irmão?!!!
HIRÃO
Irmão o caralho! Você não presta, sosô. Eu
sabia que você era um idiota, bem-nascido, coxinha, filhinho da mamãe! Mas
traíra? E logo comigo?
JOVEM SALOMÃO
Não tô entendendo, Hirão, gorduchão! Não
me bata! É tudo fifty fifty, Hirão! Tudo Fifty Fifty!
HIRÃO (senta-se desolado)
Depois de tudo eu que fiz, todas essas
obras. Eu não passava de mais um empregado teu, não é sosô?(tira do bolso sacos
de areia) E eu que eu ganhei com isso? Nada! Nada! Você sempre recebeu mais
deu. A sua vida sempre foi assim. Você sempre quis tudo e sempre mais. Você,
sosô, é um buraco sem fim que consome tudo em volta. Mas eu vou te fazer
engolir essa merda ( Pega o JOVEM SALOMÃO e enfia os sacos de areia na boca
dele) Fica com essa porra! Tu não queria tudo? Então engole! (Começa a ler a
lista de tudo que fez. Delação premiada. A luz vai diminuindo enquanto a enorme
lista é lida em off).
" De Ben-Hur, nas montanhas de Efraim: 300
mil dólares por mês e mil e oitocentos pares de sapato;
Ben-Dequer em Macaz, e em Saalbim, e em
Bete-Semes, e em Elom, e em Bete-Hanã: duzentos e cinquenta mil por dia, 4
fazendas e 10 mil algemas acolchoadas fabricadas pela Gucci(uivo de lobo);
Ben-Hesede em Arubote; também este tinha a Socó
e a toda a terra de Hefer: dois milhões e trinta mil caixas de chocolate suiço;
Ben-Abinadabe em todo o termo de Dor: 35 milhões e 568 bolsas Prada e
Louis Vitton.
Baana, filho de Ailude, tinha a Taanaque, e a
Megido, e a toda a Bete-Seã, que está junto a Zaretã, abaixo de Jizreel, desde
Bete-Seã até Abel-Meolá, para além de Jocmeão; pra esse, aulas de tênis, sapateio
e duas hidroelétricas.
O filho de Geber, em Ramote de Gileade; tinha este as aldeias de Jair,
filho de Manassés, as quais estão em Gileade; também tinha o termo de Argobe, o
qual está em Basã, sessenta grandes cidades, com muros e ferrolhos de cobre;
Ainadabe, filho de Ido, em Maanaim. Aimaás em Naftali; 280 milhões, 480 mil, 798 e alguma
coisa.
Jeosafá, filho de Parua, em Issacar; Simei, filho de Elá, em Benjamim: Geber, filho de Uri, na terra de Gileade, a terra de
Siom, rei dos amorreus, e de Ogue, rei de Basã."
Ah, Sosô: tu achava que o dinheiro vinha
de onde? Do céu? Do teu cu? Teu reinado acabou. Essa e outras listas do Setor
de Operações estruturadas vão correr o mundo. No futuro todos vão saber que o
grande Sosô era um grande filho da puta!
11- FINAL
Ventania.
Novamente quarto de hospital público. Ambiente enfumaçado, Salomão velho,
paciente terminal em um quarto de hospital público. Ele está com sondas
enfiadas em suas veias, sentado em uma cadeira giratória, com roupa hospitalar.
Ele olha com raiva para frente. Sons de ventos e de respiração humana. Depois
de um tempo, o velho ergue lentamente seu braço, o sangue escorrendo em seus
braços lívidos. Ele tenta agarrar a fumaça, que escapa entre os seus dedos.
Depois de um tempo desiste e fala, mostrando a boca velha, suja, dentes amarelados-
o cadáver insepulto. Instrumental Valsa do tempo
VELHO SALOMÃO
Engarrafar o vento
Beber copos de areia
Fugir da sombra e da fome de luz
O melhor teria sido nascer morto,
O melhor é uma casa onde há o luto que a
festa
a desgraça que a alegria
eu sou como os estalos dos espinhos no
fogo,
a carteira escondida que se perdeu
Tarde eu entendia que nosso grande
problema é saber nem o que vai acontecer daqui a um minuto. E nisso estamos
todos juntos - o rei e o ladrão, o sábio e o idiota.
Entram
todos da peça. cada um dia uma das seguintes frases. A música vai ficando mais
divertida.
1-O mais veloz pode perder a corrida
2-o mais valente, morrer como um covarde.
3-Armadilha para aves, peixes que caem na
rede -
assim somos nós iguais em nossa miséria.
4-Quem abre um buraco, cava a própria
cova.
5-Quem derruba um muro ergue abismos.
6-Quem constrói pontes enterra lagoas.
7- Uma casa com buracos no telhado
8- Bicho de pé, olho de vidro, a boca
banguela
9- A taça cheia de vidro cai e quebra
10- Os colares de ouro arrebentam
11- O gosto das coisas se vai.
FESTA COM TODOS.
FIM.