quarta-feira, 8 de junho de 2016

Análise textual IX - Audiocenas

6- Audiocenas
Essa felicidade, esse entorpecimento que Salomão causa, é produzida por meios bem identificáveis, sendo a manipulação do sons e seus efeitos sobre a audiência uma estratégia recorrente e eficiente.
 Voltando ao começo da trajetória do maravilho soberano, vemos que logo após sua unção como rei, houve manifestação pública e sonora, tudo indicado por David, o mestre da música[1]: "Então Davi mandou busca o sacerdote Zadoque, o profeta Natã e Benaías, filho de Joada. Quanto entraram , Davi disse: "Levem com vocês os funcionários do meu palácio e façam o meu filho Salomão montar a minha própria mula e o levem até a fonte de Giom. Ali Zadoque e Natã o ungirão rei de Israel. Depois toquem as cornetas e grite: 'Viva o rei Salomão' (I Reis 1:32-34)". Após este ruidoso ritual executado, "todos foram andando atrás de Salomão, gritando de alegria e tocando flautas; e faziam tanto barulho, que até parece que a terra estava rachando (I Reis 1:40)". 
Essa produção sonora não se restringe ao grupo que a efetiva ou ao lugar em que ela acontece. A massa sonora chega aos ouvidos da oposição: " Adonias e todos os seus convidados tinham acabado de comer quando ouviram aquele barulho. Joabe ouviu o som da corneta e pergunto: - O que quer dizer essa barulhada da cidade?"
O som chega antes de seu significado, da visualização de sua fonte: a aclamação de David que toma conta da cidade chega aos ouvidos do pequeno grupo aliado ao legítimo e autodeclarado sucessor de David. Primeiro esse grupo ouve as manifestações populares para depois, com a chegada de um mensageiro, entender o que está acontecendo. O poder de Salomão é antecipado por seus audíveis efeitos.
Após ter conhecimento da situação, o temor toma conta da festa em torno de Adonias: "Então os convidados de Adonias ficaram com medo e se levantaram, e foram embora, cada um pelo seu caminho. Adonias ficou com muito medo de Salomão ( I Reis 1:49-50)."
A música e o ruído aqui geraram respostas emocionais opostas: enquanto a adesão a Salomão cresce, temos muito som e muita alegria; do outro lado, ao juntar a fonte do som com aquilo que ouviu, o grupo pró Adonias se desfaz em pavor, deixando o postulante ao trono abandonado.
O contexto da produção desse som vem de uma tecnologia psicagógica testada no serviço religioso[2]. Há a junção entre política e religião. Os sacerdotes ungem Salomão e os instrumentos musicais são tocados. O som dos instrumentos depois se conjugam ao sons das vozes e dos ruídos das pessoas.  Não é por mero detalhe que o sábio e rico Salomão depois terá composto "mais de mil canções (I Reis 4:32)". As pessoas vêm até ele para vê-lo e ouvi-lo.
O palácio se transforma no palco de Salomão.  As amplas dimensões do complexo palaciano com seus salões projeta não apenas depósitos de coisas e pessoas que serão admiradas visualmente: bichos, pessoas e coisas são fontes sonoras. Um harém com 1100 mulheres, os cavalos, os macacos, os copos, o vai-e-vem de servos e visitantes, os músicos, as festas, os banquetes - nada disso parece existir em uma câmara




[1] Em I Crônicas 25:1-31 há uma detalhada organização da música do templo, elaborada por David, mostrando a importância da exploração das sonoridades não apenas nos serviços religiosos, por organizar o que se fazia na adoração era também direcionar sua recepção, o que acontecia fora do templo. E David não só determinou como a parte musical do serviço religioso seria realizado como também precisou quais e como os instrumentos seriam construídos ( I Reis 23:5).
[2] Psicagogia- "guiar as almas".  V. Platão Fedro.

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