2.1
O julgamento modelar
Após o sonho, grande parte das referências
a Salomão se direcionam a construção de prédios públicos que organizam as
atividades de culto, proteção e administração do reino. Por essas obras,
Salomão se torna um governante reconhecido por sua sabedoria e por riqueza
material, cumprindo as expectativas do sonho: ao tomar as decisões certas no
exercício de sua atividade de juiz e rei, todas as demais coisas (vida longa,
prosperidade e paz) seriam alcançadas.
Antes desse ritmo ascencional da
narrativa, Salomão defronta-se com um caso difícil. Duas mulheres vêm à presença do rei. Moravam
na mesma casa, cada uma mãe de uma criança recém-nascida. Uma das crianças
morre. As duas se apresentam como mães de uma mesma criança. Salomão deve
decidir.
O texto nos mostra que havia poucos dados
para se levar em conta nessa decisão: nenhum documento, nenhuma testemunha,
nada além das falas das solicitantes, que querem a mesma coisa: "Somente
nós duas estávamos na casa; não havia mais ninguém lá ( I Reis 3:19)". O
caso era de um morte, uma das crianças havia morrido. Salomão teria de decidir
com aquilo que ele tinha diante dele.
As duas mulheres não são identificadas por
nome na narrativa. E, durante a discussão em frente do rei, as coisas ficam
ainda mais confusas. Porém, é durante essa discussão que possivelmente Salomão
pode analisar os comportamentos dessas mulheres e a relação que tem com o
bebê.
Mas o caso está na corte. É um teste
também para o rei. A decisão a ser tomada ali vai reverberar no reino, como o
texto nos informa "Todo o povo de Israel soube dessa decisão do rei
Salomão, e aí todos sentiram um grande respeito por ele, pois viram que Deus
lhe tinha dado sabedoria para julgar com justiça(I Reis 3:28)."
A resolução do caso não é baseada em
nenhuma lei. Foi uma ação ousada, um risco calculado: "Então o rei Salomão
disse: - Cada uma de vocês diz que a criança viva é a sua e que a morta é da outra. Então mandou busca
uma espada e, quando a trouxeram, disse: - Cortem a criança viva pelo meio e
dêem metade para cada uma destas mulheres. (I Reis 4:25)."
Ora, uma criança pela metade é uma criança
morta, não resolve em nada a disputa. E a ordem do rei deve ser obedecida. Aqui
o rei age como o mandante das mortes de Adonias, Joabe e Simei, como senhor da
vida e da morte. E no que então Salomão
foi sábio?
Como
vimos, a sabedoria de Salomão está relacionada aos negócios da cidade, a tomar
decisões, a surpreender, a tomar o lugar de hegemonia antes dos outros, é saber
o que é melhor para si em cada situação difícil. Havia uma morte no caso. Mas
quem é o senhor da morte é o rei. Nos caso havia duas mulheres, mas quem detém
o poder sobre as mulheres é o rei. As duas mulheres disputam a vida do bebê.
Mas que decide sobre a vida das pessoas, sobre o que é bom ou mau é o rei. Para
quem fosse o bebê, o mais importante era o rei ter decidido, ter preconizado
seu poder. A cada nova decisão, o rei reafirma sua privilégio.
As respostas da mulheres manifestam tal
encontro entre a vontade de submeter o outro à sua hegemonia, e a resignação:
"A verdadeira mãe do menino, com o
coração cheio de amor pelo filho, disse: - Por favor, senhor, não mate o meu
filho! Entregue-o a esta mulher!
Mas
a outra disse: Podem cortá-lo em dois pedaços! Assim ele não será nem meu, nem
seu! (I Reis 3:26)."
O duelo entre as duas mães clarifica o a
relação entre rei e vassalos. A que cede, segue o que se espera de quem é
sujeito à servir ao trono. A que indica a morte, age como o rei, repetindo seus
comandos. Em sua decisão, Salomão retoma
seu papel de senhor da vida e da morte ao favorecer a que cede, pois ela está
em seu lugar, em sua posição de subserviência dentro da lógica social. Não se
trata aqui de saber o que houve. Pois o texto é ambíguo: duas mulheres na mesma
casa, uma criança morta, por que uma das mulheres acidentalmente dormiu e
sufocou o bebê. Mas qual das mulheres? De fato, a decisão favorável recaiu
sobre a mulher que será a melhor mãe para a lógica social. Ela ensinará seu
filho a ceder, a aceitar a autoridade do soberano. O que se decide nesse julgamento é se o rei
tem o não a prerrogativa nos acontecimentos da vida das pessoas. O rei está em
tudo, nas disputas domésticas, nos acordos comerciais, no coração dos súditos.
Ele é a autoridade, o ponto de referência que norteia as ações de sua
comunidade. O rei não é justo: a justiça do rei é a aceitação da ordem social.
O rei não é sábio: sábio é aceitar a ordem social e permanecer vivo, permanecer
onde se está.
Nesse julgamento modelar percebemos também
um deslocamento: o rei deixa de matar. O que importa agora é uma mudança de
ênfase em relação ao seu pai David. Embora sempre vão haver mortes, após a
consolidação da sucessão real, o nome de Salomão está mais associado às
questões diplomáticas, às obras de beneficiamento do trono e à burocracia que às guerras. As guerras voltam quando a
partir de um dado momento há uma virada no destino de Salomão. Quanto ele
atinge seu ápice, as coisas coisas a cair.
Mas, antes, Salomão caminha para se tornar o mais rico, o mais sábio, o
mais bem sucedido entre os reis do planeta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário