segunda-feira, 6 de junho de 2016

Análise textual IV: o julgamento modelar

2.1 O julgamento modelar
Após o sonho, grande parte das referências a Salomão se direcionam a construção de prédios públicos que organizam as atividades de culto, proteção e administração do reino. Por essas obras, Salomão se torna um governante reconhecido por sua sabedoria e por riqueza material, cumprindo as expectativas do sonho: ao tomar as decisões certas no exercício de sua atividade de juiz e rei, todas as demais coisas (vida longa, prosperidade e paz) seriam alcançadas.
Antes desse ritmo ascencional da narrativa, Salomão defronta-se com um caso difícil.  Duas mulheres vêm à presença do rei. Moravam na mesma casa, cada uma mãe de uma criança recém-nascida. Uma das crianças morre. As duas se apresentam como mães de uma mesma criança. Salomão deve decidir.
O texto nos mostra que havia poucos dados para se levar em conta nessa decisão: nenhum documento, nenhuma testemunha, nada além das falas das solicitantes, que querem a mesma coisa: "Somente nós duas estávamos na casa; não havia mais ninguém lá ( I Reis 3:19)". O caso era de um morte, uma das crianças havia morrido. Salomão teria de decidir com aquilo que ele tinha diante dele.
As duas mulheres não são identificadas por nome na narrativa. E, durante a discussão em frente do rei, as coisas ficam ainda mais confusas. Porém, é durante essa discussão que possivelmente Salomão pode analisar os comportamentos dessas mulheres e a relação que tem com o bebê. 
Mas o caso está na corte. É um teste também para o rei. A decisão a ser tomada ali vai reverberar no reino, como o texto nos informa "Todo o povo de Israel soube dessa decisão do rei Salomão, e aí todos sentiram um grande respeito por ele, pois viram que Deus lhe tinha dado sabedoria para julgar com justiça(I Reis 3:28)."
A resolução do caso não é baseada em nenhuma lei. Foi uma ação ousada, um risco calculado: "Então o rei Salomão disse: - Cada uma de vocês diz que a criança viva é a sua  e que a morta é da outra. Então mandou busca uma espada e, quando a trouxeram, disse: - Cortem a criança viva pelo meio e dêem metade para cada uma destas mulheres. (I Reis 4:25)."
Ora, uma criança pela metade é uma criança morta, não resolve em nada a disputa. E a ordem do rei deve ser obedecida. Aqui o rei age como o mandante das mortes de Adonias, Joabe e Simei, como senhor da vida e da morte.  E no que então Salomão foi sábio?
 Como vimos, a sabedoria de Salomão está relacionada aos negócios da cidade, a tomar decisões, a surpreender, a tomar o lugar de hegemonia antes dos outros, é saber o que é melhor para si em cada situação difícil. Havia uma morte no caso. Mas quem é o senhor da morte é o rei. Nos caso havia duas mulheres, mas quem detém o poder sobre as mulheres é o rei. As duas mulheres disputam a vida do bebê. Mas que decide sobre a vida das pessoas, sobre o que é bom ou mau é o rei. Para quem fosse o bebê, o mais importante era o rei ter decidido, ter preconizado seu poder. A cada nova decisão, o rei reafirma sua privilégio. 
As respostas da mulheres manifestam tal encontro entre a vontade de submeter o outro à sua hegemonia, e a resignação:
"A verdadeira mãe do menino, com o coração cheio de amor pelo filho, disse: - Por favor, senhor, não mate o meu filho! Entregue-o a esta mulher!
 Mas a outra disse: Podem cortá-lo em dois pedaços! Assim ele não será nem meu, nem seu! (I Reis 3:26)."
O duelo entre as duas mães clarifica o a relação entre rei e vassalos. A que cede, segue o que se espera de quem é sujeito à servir ao trono. A que indica a morte, age como o rei, repetindo seus comandos.  Em sua decisão, Salomão retoma seu papel de senhor da vida e da morte ao favorecer a que cede, pois ela está em seu lugar, em sua posição de subserviência dentro da lógica social. Não se trata aqui de saber o que houve. Pois o texto é ambíguo: duas mulheres na mesma casa, uma criança morta, por que uma das mulheres acidentalmente dormiu e sufocou o bebê. Mas qual das mulheres? De fato, a decisão favorável recaiu sobre a mulher que será a melhor mãe para a lógica social. Ela ensinará seu filho a ceder, a aceitar a autoridade do soberano.  O que se decide nesse julgamento é se o rei tem o não a prerrogativa nos acontecimentos da vida das pessoas. O rei está em tudo, nas disputas domésticas, nos acordos comerciais, no coração dos súditos. Ele é a autoridade, o ponto de referência que norteia as ações de sua comunidade. O rei não é justo: a justiça do rei é a aceitação da ordem social. O rei não é sábio: sábio é aceitar a ordem social e permanecer vivo, permanecer onde se está.

Nesse julgamento modelar percebemos também um deslocamento: o rei deixa de matar. O que importa agora é uma mudança de ênfase em relação ao seu pai David. Embora sempre vão haver mortes, após a consolidação da sucessão real, o nome de Salomão está mais associado às questões diplomáticas, às obras de beneficiamento do trono e à burocracia  que às guerras. As guerras voltam quando a partir de um dado momento há uma virada no destino de Salomão. Quanto ele atinge seu ápice, as coisas coisas a cair.  Mas, antes, Salomão caminha para se tornar o mais rico, o mais sábio, o mais bem sucedido entre os reis do planeta.

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