2. A sabedoria de Salomão.
Não é por acaso que a primeira fase de afirmação do soberano se conclua com sua elevação a um patamar sobrehumano. Senhor da vida e da morte, o jovem Salomão é alçado ao mais sábio de todos os homens por uma dádiva divina: o próprio Deus aparece a Salomão em um sonho e durante um diálogo Salomão pede, entre todas as coisas que ele poderia pedir, "dá-me sabedoria para que eu possa governar o teu povo com justiça e saber a diferença entre o bem e o mal. Se não for assim, como é que eu poderei governar este teu grande povo? (I Reis 3:9)."
Na cena do sonho, o protagonista não é Deus, e sim Salomão. Salomão consegue persuadir Deus pedindo algo que escapa do horizonte comum. No lugar de "pedir vida longa, ou riquezas, ou a morte de seus inimigos(I Reis 3: 11)", como David teria solicitado, Salomão surpreende Deus e enuncia as habilidades para seu cargo. Por meio dessas habilidades, as outras coisas serão extensivas, decorrenciais. Ou seja, Salomão é sábio pois apresenta-se como sábio. E sabedoria aqui é a construção de sua imagem, da recepção de sua figura. Esse cálculo aprendido na lógica palaciana de sobrevivência manifesta-se em um jogo de mostrar e esconder. Para Deus, que tudo sabe, Salomão apresenta-se como Deus, como um poderoso juiz que sabe discriminar o que é acessório e o que é fundamental. Ora, se Salomão é capaz de persuadir Deus, o que dirá dos outros. Essa etiologia de Salomão reforça aquilo que sua sabedoria não é algo abstrato ou ontológico: está diretamente relacionada a sua vivência na corte e ao exercício de seu cargo.
Então quando Salomão solicita sabedoria de Deus, o jovem já possui o que pede. Na verdade o diálogo com Deus é um exercício dessa sabedoria. O sonho de Salomão é a explicitação de si mesmo. O fato de Deus ser o interlocutor apenas amplia a figura de Salomão, sua excepcionalidade, como se Deus confirmasse o que Salomão é e o que faz para ser o que ele é.
Primeiramente, há a situação intersubjetiva: Salomão demonstra sua sabedoria nas trocas, no contato entre pessoas. Segundo: essas situações se caracterizam por riscos, por escolhas, por decisões. Deus apresenta um proposta "O que você quer que eu lhe dê? (I Reis 3:5). Terceiro: nessas situações de contato, Salomão surpreende, ao indicar ao que está entre os elementos postos diante de todos mas que só ele é capaz de distinguir. Salomão escolhe bem, escolhe o melhor. E por que o melhor? Sabendo avaliar as melhores opções para si, Salomão poderá reforçar seu domínio.
Não é atoa que o sonho de Salomão seja precedido do ato de casar com a filha do Faraó de então. Ora, esse casamento político, essa aliança com um inimigo histórico será uma constante na carreira de Salomão. Na contabilidade final de seu reino, é informado que ele "casou com setecentas princesas e também teve trezentas concubinas (I Reis 11:3)." Nisso ele retoma o ímpeto de seu pai, aplacado pela velhice, mas o direciona para atos de continuação e expansão do reino.
Nesse sentido a justaposição entre o casamento da filha do Faraó e o sonho de Salomão ratificam uma lógica de Estado como determinante para os atos do governante. Sabedoria é o bem agir em prol da sustentação do trono. Nesse sentido, a biografia pessoa do rei se iguala aos seus atos de governo. Ele parece não agir para si mesmo e sim como mecanismo de um lógica maior que o indivíduo, uma engrenagem que se coloca a funcionar e não admite intervenções. Mesmo que fosse estranho ter como aliado o Faraó e ou moralmente não válido casar com estrangeira, são decisões que se justificam em si mesmas, como atos de um líder que faz o melhor não para o povo ou para si mas para o Estado. E para entronizar essa nova ordem todos serão sacrificados, todos os recursos serão utilizados. Não importa o bem ou o mal: o que realmente interessa é a tomada de decisão certa.
É o que ficará claro no apólogo das duas mulheres que disputam um bebê.
Nenhum comentário:
Postar um comentário