quinta-feira, 2 de junho de 2016

Análise textual I- A sucessão real

1- Da guerra para a paz por meio da guerra

Em I Reis vemos de início a sucessão de David. Há uma ambiguidade nas fontes.
II Samuel acaba por quase glorificar David. Não há informação sobre sua morte e sucessão. Penas se fala das últimas palavras do rei, que reforçam uma aliança com deus e luta contra os outros povos.

Já I Reis abre com a instabilidade na sucessão: Adonias, o filho mais velho de David, se autoproclama o novo rei, arvorando-se como um novo Absalão, o preferido na sucessão. Daí entre em cena uma famosa ex-mulher de David: Bateseba, mulher do oficial de David, Urias,  que teve um caso com o rei. Aliás, David teve muitos filhos com diversas mulheres. A lista está em I Crônicas 3:1-8. Com Bateseba teve quatro. Entre eles, Salomão.  Bateseba entra na história para reivindicar uma promessa de David: que seu filho Salomão iria sucedê-lo no trono (I Reis 1:11-53).
Mas em outra versão, a de I Crônicas, a sucessão real é sem traumas: David convoca uma reunião com todas as autoridades do país e apresenta Salomão como seu sucessor. Argumenta que não vai construir o templo pois é um homem com as mãos sujas de sangue. No lugar de um soldado, o povo vai ser governado agora por um legislador e administrador. Da paz para a guerra. Nessa assembléia, David entrega para Salomão as plantas de todos os prédios que deveriam ser construídos: o templo, os depósitos, salas, palácios, etc. E também entrega um plano de organização do serviço religioso. Assim, Salomão seria um encarregado de fazer cumprir essa herança administrativa, seria o capataz de David. David morto, Salomão como um cumpridor das tarefas que o pai lhe atribuiu. David afirma que seu filho é ainda jovem e sem experiência ( I Crônicas 29:2.)
Essa outra versão é pró-David, e mostra uma etapa pacífica na manutenção da linhagem de David, que ainda permanece como figura tutelar da casa real.
Já em Reis I o primeiro episódio de Salomão é o luta pela sucessão do trono, como o foco em sua mãe. Como em Crônicas, Salomão é jovem, e não ocupa uma posição central. Mas começa envolvido em uma série de ações discutíveis. Ele é ungido como rei por alguns emissários de David, entre eles Benaias, que vai se tornar chefe da guarda de Salomão. A primeira missão de Benaias é depois se livrar da oposição, matando justamente Adonias. Essa limpeza da oposição entre os pretendentes aos trono, como David o fizera, matando os descendentes de Saul, destoa um pouco da imagem do rei pacífico que o texto de Crônicas procura construir. Salomão é mostrado como uma nova etapa, um desenvolvimento da casa davídica, mas se vale dos mesmo métodos. Benaias é o Joabe de Salomão. Os primeiros passos do governo de Salomão são uma série de assassinatos: o jovem rei manda matar Adonias, Simei e Joabe, antigo capitão de David. Depois dessas mortes relatadas (pode ter havido outras...), desses expurgos, o texto afirma "E assim Salomão controlou  completamente a situação de seu governo (I Reis 1:46)."
Em parte essas morte foram ordenadas por David em seu leito de morte, como últimos conselhos a seus filho (I Reis 2:1-9). Mas, no seguir da narrativa, vemos que são ações de um programa maquiavélico de governo.
Uma característica dessas mortes relatadas é o modo como elas são produzidas. Mesmo que haja uma finalidade puramente estratégica nesses expurgos, um objetivo político definido, elas possuem uma dramaturgia bem delineada:
a- Benaias é a mão que mata;
b- Salomão se apresenta como o mandatário, mas envolvido em falas irônicas, que transferem para a própria vítima a culpa de sua morte;
c- as vítimas não passam em testes que poderiam alterar um destino fatal já previamente indicado.

Assim, há uma dualidade: o rei tira sobre si a responsabilidade das ações ao atribuir às vítimas e ao executor as ações ligadas a execução, ao mesmo tempo que aparece como alguém justo, que propôs algo que não foi aceito pela vítima. Simei, Joabe e Adonias são variações dessas táticas de autoafirmação de Salomão que de uma lado reforça sua imagem como alguém envolvido em discursos inteligentes e não ações sanguinárias, mas que por outro é tão terrível quanto seu pai.

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