quinta-feira, 2 de junho de 2016

Análise textual II - as mortes

1.1 As mortes iniciais
1.1.1 Adonias
Adonias vai visitar  Bateseba. Ele faz um pedido. Ele desiste de lutar pelo trono, mas em troca pede pra ficar com Abisague, a jovem mulher que aquecia David em sua cama. Bateseba vai ter com Salomão. O novo rei coloca um trono para ela ao lado do seu. Por causa desse pedido Salomão manda Benaias matar Adonias.  Adonias morreu por que queria ficar com a mulher que dormia com seu pai? Não é apenas isso. Ao pedido da mãe, Salomão responde veementemente : " Por que a senhora está pedindo Abisague para Adonias? A senhora deveria pedir que eu dê a ele também o reino. Afinal, Adonias é o meu irmão mais velho, e o sacerdote Abitar e Joabe estão do lado dele! (...) Que Deus me castigue, e em dobro, se eu não fizer Adonias pagar com a vida por ter feito este pedido! ( I Reis 2:22-23)".
Ora, o pedido de Adonias poderia o reinserir com primazia na ordem de sucessão, pois estaria casando com a mulher de seu pai David.  Adonias teria o direito na sucessão por ser o filho mais velho, após as mortes de Amon e Absalão. Mas Bateseba e o sacerdote Natã providenciaram a preferência por Salomão. Há uma instabilidade política, o entrechoque entre candidaturas com diversos níveis de legitimidade.  Ao fim, o pedido de Adonias aparece como um pretexto para ação imediata de Salomão. Adonias havia se antecipado aos demais herdeiros e à indicação do pai em virtude de seu status: filho mais velho.  Com o enfraquecimento de David, o que seria melhor para o Estado foi fabricado pelo líder religioso, Natã, e pela integrante da corte, Bateseba. Ela, com Salomão, ganha um novo papel, o de Rainha mãe. Antes, um das mulheres de David, nem a principal, com a jovem Abisague forrando o leito do velho rei. Agora, tem um lugar ao lado do filho, em um trono todo seu.
Em todo caso, a antinomia Adonias e Salomão nos coloca diante de um cenário de disputas internas palacianas, que será tônica do reino de Salomão. David se apresenta como um senhor da guerra, em um projeto expansionista, imperialista. Ele ataca os outros, enquanto modela os seus. Já Salomão é apresentado como um líder cosmopolita, que realiza empreendimentos de organização do Estado a partir do comércio com outras nações.
Mas o fundo da disputa entre os pretendentes, resumida na antinomia entre Adonias e Salomão, é o da continuidade e transformação do legado de David. Como prólogo, David é apresentado como velho, fraco, que "não conseguia se aquecer (I Reis1:1)." Segundo Brueggmann 2000:212,  a expressão se refere a "não ter uma ereção. A abertura do parágrafo é relatar a impotência sexual do rei, sua perda de virilidade e daí sua desqualificação como rei. O fim da virilidade de David, testada por 'uma jovem virgem muito bonita'{Abisague}, abre caminha para a narrativa que se segue, pois agora há uma vacância funcional no trono. Pode-se perceber a revoada de urubus em volta do trono, esperando para matar."
Assim, o pedido de Adonias, que poderia parecer pouco, uma mulher por um trono. Adonias, após a unção de Salomão, havia fugido com muito medo de ser morto. Adonias se refugiou na tenda  onde se realizam os serviços religiosos - o templo não foi construído ainda. Ele diz: "Quero que o rei Salomão jure hoje que não mandará me matar à espada (I Reis 1:51)." Ambivalentemente, Salomão responde "Se ele provar que é um homem de palavra, eu juro que nem um fio dos seus cabelos será tocado; mas se estiver com más intenções, ele morrerá (I Reis 1:52)."
Pela resposta de Salomão sabemos que Adonias não teria muitos dias de vida. David transfere para o próprio Adonias a justificativa antecipada de sua morte. Nesse momento,  há um intervalo entre as falas e as ações. De fato, as decisões são previamente tomadas e as falas não expressão aquilo que antecipadamente fora deliberado. A sincronização entre falas deliberativas e ações acontece em contexto de execução por morte. Assim, ao propor este intervalo, parece que a decisão veio depois do ato equivocado do alvo. Chave para isso é interpretar as falas como registros de decisões já tomadas a partir de transferência de culpa.
Assim temos: fala-se, enuncia-se as intenções e as decisões de ações premeditadas a partir de um discurso que projeta para a vítima a responsabilidade por sua própria eliminação; a vítima age ou diz agora que mobiliza uma ação de eliminação; em seguida, o sábio rei manda eliminar o infrator; por fim, o assassinato é realizado por um funcionário de execução.
O modelo dessa ações de constituição do poder na corte vem de David. Antes de morrer, entre seus conselhos ele pede que Salomão cumpra um programa de assassinatos pontuais: " Joabe matou homens inocentes e agora eu sou o responsável pelo que ele fez e estou sofrendo as consequências. Você sabe o que deve fazer. Não deixe que ele tenha morte natural. (...) E não esqueça de Simei (...) Você é um homem sábio e não deve deixar que ele fique sem castigo. Você sabe o que deve fazer para que ele morra. ( I Reis 2:5,8-9)."
Adonias se apressou, não negociou antecipadamente, não fez a política palaciana. À sua precipitação, temos a  elaborada rede de relações na qual Salomão parece estar ciente. O tempo de matar pode ser rápido, mas não o tempo de se envolver no mundo da corte. A sabedoria de Salomão se ergue sobre os cadáveres de suas estratégias palacianas. Salomão é o David sofisticado, nascido e crescido no maquiavelismo da corte.
1.1.2  Joabe
A morte de Joabe vincula-se, inicialmente, à ordem expressa de David. De David, Salomão recebe projetos de construção e planos políticos.  A morte de Joabe entra nesse conjunto de ações propostas para Salomão para que a imagem da casa real se redefinisse. Matar Joabe era enterrar o passado, o passado que David gostaria que fosse esquecido.
Joabe era filho de Zeruia, irmã de David, o que o faz sobrinho do rei. Foi o comandante leal das tropas de David, envolvido tanto em guerras contra outros povos/cidades, quanto em apagar problemas da corte, como no caso do morte de Urias, esposo de Bateseba, e na rebelião de Absalão, filho de David que quis tomar o reino de seu pai à força e foi morto por Joabe.  A partir de uma dado momento em sua carreira começa a questionar as ordens de David e apóia Adonias na sucessão real.
Então matar Joabe é uma necessidade para tanto para o fantasma de David quanto para a afirmação de Salomão. De fato, é preciso substituir o assassino por outro. E quem mata Joabe toma o seu lugar.
Joabe finda seus dias de modo parecido com Adonias. Joabe se esconde na tenda que onde está o altar pois estava com medo de Salomão.  Salomão destaca Benaias para matar Joabe. Eis o irônico desenlace:
 "Benaias foi até a tenda de Deus e disse a Joabe:
 - O rei mandou você sair daí. - Não saio - respondeu Joabe. - Eu morrerei aqui.
Então Benaias voltou e conto ao rei o que Joabe tinha dito.
Aí Salomão ordenou:
- Faça o que ele disse. Mate  e sepulte-o. Assim nem eu nem os descendentes do meu pai seremos mais considerados culpados pelo que Joabe fez quando matou homens inocentes(I Reis 2:30-31).
Assim, nem Benaias nem Salomão são imputáveis de um crime: a morte de Joabe é responsabilidade dele mesmo.
Novamente a questão da palavra: tanto Adonias quanto Joabe encontram um fim violento de suas vidas a partir daquilo que proferem. Salomão aparece como um intérprete, um cabal decifrador de discursos. Ou melhor, ele mobiliza frases de um contexto para outro, resignificando-as, propondo um jogo hermeneutico onde na verdade não há ambivalência. Com isso, ele mesmo se transforma em intérprete e juiz.
1.1.3 Simei
A morte de Simei, também previamente encomendada por David, singulariza um dos aspectos cruciais dessas mortes todas: servir de mensagem, de propaganda da nova ordem, ou da transformação na orientação da ordem davídica.  Simei descendia do antigo rei deposto Saul. David havia exterminado a linhagem de Saul, mas preservou este descendente como um trofeú. Simei apontara publicamente as mentiras de David, o seu lado oculto (II Samuel 16:5-14). Isso feito durante a revolta de Absalão, a maior crise política e pessoal de David.  Como seu pai, Salomão preserva Simei por um tempo, restringindo seus movimentos "Faça uma casa para você aqui em Jerusalém. Fique morando nela e não saia da cidade. E fique sabendo que , no dia em que você sair e atravessar a o ribeirão Cedrom, você será morto, e a culpa será somente sua (I Reis 2:36-37)."
Esta última morte dentro do percurso inicial de autoafirmação do jovem soberano demonstra os laços estreitos entre o sanguinário David e o sábio Salomão. Embora a forma base do nome de Salomão se refira a 'paz', 'união'[1],seus primeiros atos manifestam expurgos típicos de uma sucessão que se fortalece por expurgos pontuais.  Simei vincula-se a uma oposição à ordem vigente, uma oposição que brada e se torna pública, conhecida. David não o matou imediatamente, frente à revolta de Absalão, pois seria um erro dar audiovisibilidade à oposição naquele momento - lembrar que Simei havia pronunciado acusações e maldições ao rei e jogado pedras em David e em seus homens ( II Samuel 12:5-6)".
Após a morte de Absalão, Simei vai atrás do rei e pede perdão. David contém a fúria assassina de Joabe e seu irmão Abissai. E promete para Simei: "Eu juro que você não será morto (2 Samuel 19:23)." A mesma boca que pronuncia essa promessa depois demandará de seu sucessor a morte de seu oponente. As vidas das pessoas ficam nas mãos dos soberanos, que delas se desfazem quando for necessário e conveniente. Simei é um sobrevivente, alguém com uma sentença de morte sobre sua cabeça. O assassinato do rebelde reforça o poder do rei em superar mesmo as fronteiras da morte. De outro lado, mostra como as palavras e as ações não se sincronizam, possibilitando a construção de jogos, de uma retórica da atuação de Salomão: ele afasta de si o ato sanguinário, propõe uma norma que será quebrada pela vítima potencial, e a pena é aplicada pelo agente do Estado encarregado de punir com violência os desvios dos súditos.  Em todo caso, Simei reafirma a lógica palaciana de Salomão tanto ao viver, quanto ao morrer.



[1] V. http://www.abarim-publications.com/Meaning/Solomon.html#.V1Aui5MrIUE .

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