1.1
As mortes iniciais
1.1.1
Adonias
Adonias vai visitar Bateseba. Ele faz um pedido. Ele desiste de
lutar pelo trono, mas em troca pede pra ficar com Abisague, a jovem mulher que
aquecia David em sua cama. Bateseba vai ter com Salomão. O novo rei coloca um
trono para ela ao lado do seu. Por causa desse pedido Salomão manda Benaias
matar Adonias. Adonias morreu por que
queria ficar com a mulher que dormia com seu pai? Não é apenas isso. Ao pedido
da mãe, Salomão responde veementemente : " Por que a senhora está pedindo
Abisague para Adonias? A senhora deveria pedir que eu dê a ele também o reino.
Afinal, Adonias é o meu irmão mais velho, e o sacerdote Abitar e Joabe estão do
lado dele! (...) Que Deus me castigue, e em dobro, se eu não fizer Adonias
pagar com a vida por ter feito este pedido! ( I Reis 2:22-23)".
Ora, o pedido de Adonias poderia o
reinserir com primazia na ordem de sucessão, pois estaria casando com a mulher
de seu pai David. Adonias teria o
direito na sucessão por ser o filho mais velho, após as mortes de Amon e
Absalão. Mas Bateseba e o sacerdote Natã providenciaram a preferência por
Salomão. Há uma instabilidade política, o entrechoque entre candidaturas com
diversos níveis de legitimidade. Ao fim,
o pedido de Adonias aparece como um pretexto para ação imediata de Salomão.
Adonias havia se antecipado aos demais herdeiros e à indicação do pai em
virtude de seu status: filho mais
velho. Com o enfraquecimento de David, o
que seria melhor para o Estado foi fabricado pelo líder religioso, Natã, e pela
integrante da corte, Bateseba. Ela, com Salomão, ganha um novo papel, o de
Rainha mãe. Antes, um das mulheres de David, nem a principal, com a jovem
Abisague forrando o leito do velho rei. Agora, tem um lugar ao lado do filho,
em um trono todo seu.
Em todo caso, a antinomia Adonias e
Salomão nos coloca diante de um cenário de disputas internas palacianas, que
será tônica do reino de Salomão. David se apresenta como um senhor da guerra,
em um projeto expansionista, imperialista. Ele ataca os outros, enquanto modela
os seus. Já Salomão é apresentado como um líder cosmopolita, que realiza
empreendimentos de organização do Estado a partir do comércio com outras
nações.
Mas o fundo da disputa entre os
pretendentes, resumida na antinomia entre Adonias e Salomão, é o da
continuidade e transformação do legado de David. Como prólogo, David é
apresentado como velho, fraco, que "não conseguia se aquecer (I Reis1:1)."
Segundo Brueggmann 2000:212, a expressão
se refere a "não ter uma ereção. A abertura do parágrafo é relatar a
impotência sexual do rei, sua perda de virilidade e daí sua desqualificação
como rei. O fim da virilidade de David, testada por 'uma jovem virgem muito
bonita'{Abisague}, abre caminha para a narrativa que se segue, pois agora há
uma vacância funcional no trono. Pode-se perceber a revoada de urubus em volta
do trono, esperando para matar."
Assim, o pedido de Adonias, que poderia
parecer pouco, uma mulher por um trono. Adonias, após a unção de Salomão, havia
fugido com muito medo de ser morto. Adonias se refugiou na tenda onde se realizam os serviços religiosos - o
templo não foi construído ainda. Ele diz: "Quero que o rei Salomão jure hoje
que não mandará me matar à espada (I Reis 1:51)." Ambivalentemente,
Salomão responde "Se ele provar que é um homem de palavra, eu juro que nem
um fio dos seus cabelos será tocado; mas se estiver com más intenções, ele
morrerá (I Reis 1:52)."
Pela resposta de Salomão sabemos que
Adonias não teria muitos dias de vida. David transfere para o próprio Adonias a
justificativa antecipada de sua morte. Nesse momento, há um intervalo entre as falas e as ações. De
fato, as decisões são previamente tomadas e as falas não expressão aquilo que
antecipadamente fora deliberado. A sincronização entre falas deliberativas e
ações acontece em contexto de execução por morte. Assim, ao propor este
intervalo, parece que a decisão veio depois do ato equivocado do alvo. Chave para
isso é interpretar as falas como registros de decisões já tomadas a partir de
transferência de culpa.
Assim temos: fala-se, enuncia-se as
intenções e as decisões de ações premeditadas a partir de um discurso que
projeta para a vítima a responsabilidade por sua própria eliminação; a vítima
age ou diz agora que mobiliza uma ação de eliminação; em seguida, o sábio rei
manda eliminar o infrator; por fim, o assassinato é realizado por um
funcionário de execução.
O modelo dessa ações de constituição do
poder na corte vem de David. Antes de morrer, entre seus conselhos ele pede que
Salomão cumpra um programa de assassinatos pontuais: " Joabe matou homens
inocentes e agora eu sou o responsável pelo que ele fez e estou sofrendo as
consequências. Você sabe o que deve fazer. Não deixe que ele tenha morte
natural. (...) E não esqueça de Simei (...) Você é um homem sábio e não deve
deixar que ele fique sem castigo. Você sabe o que deve fazer para que ele
morra. ( I Reis 2:5,8-9)."
Adonias se apressou, não negociou antecipadamente,
não fez a política palaciana. À sua precipitação, temos a elaborada rede de relações na qual Salomão
parece estar ciente. O tempo de matar pode ser rápido, mas não o tempo de se
envolver no mundo da corte. A sabedoria de Salomão se ergue sobre os cadáveres
de suas estratégias palacianas. Salomão é o David sofisticado, nascido e
crescido no maquiavelismo da corte.
1.1.2 Joabe
A morte de Joabe vincula-se, inicialmente,
à ordem expressa de David. De David, Salomão recebe projetos de construção e
planos políticos. A morte de Joabe entra
nesse conjunto de ações propostas para Salomão para que a imagem da casa real
se redefinisse. Matar Joabe era enterrar o passado, o passado que David
gostaria que fosse esquecido.
Joabe era filho de Zeruia, irmã de David,
o que o faz sobrinho do rei. Foi o comandante leal das tropas de David,
envolvido tanto em guerras contra outros povos/cidades, quanto em apagar
problemas da corte, como no caso do morte de Urias, esposo de Bateseba, e na
rebelião de Absalão, filho de David que quis tomar o reino de seu pai à força e
foi morto por Joabe. A partir de uma
dado momento em sua carreira começa a questionar as ordens de David e apóia
Adonias na sucessão real.
Então matar Joabe é uma necessidade para
tanto para o fantasma de David quanto para a afirmação de Salomão. De fato, é
preciso substituir o assassino por outro. E quem mata Joabe toma o seu lugar.
Joabe finda seus dias de modo parecido com
Adonias. Joabe se esconde na tenda que onde está o altar pois estava com medo
de Salomão. Salomão destaca Benaias para
matar Joabe. Eis o irônico desenlace:
"Benaias foi até a tenda de Deus e disse
a Joabe:
- O
rei mandou você sair daí. - Não saio - respondeu Joabe. - Eu morrerei aqui.
Então Benaias voltou e conto ao rei o que
Joabe tinha dito.
Aí Salomão ordenou:
- Faça o que ele disse. Mate e sepulte-o. Assim nem eu nem os descendentes
do meu pai seremos mais considerados culpados pelo que Joabe fez quando matou
homens inocentes(I Reis 2:30-31).
Assim, nem Benaias nem Salomão são
imputáveis de um crime: a morte de Joabe é responsabilidade dele mesmo.
Novamente a questão da palavra: tanto
Adonias quanto Joabe encontram um fim violento de suas vidas a partir daquilo
que proferem. Salomão aparece como um intérprete, um cabal decifrador de
discursos. Ou melhor, ele mobiliza frases de um contexto para outro,
resignificando-as, propondo um jogo hermeneutico onde na verdade não há
ambivalência. Com isso, ele mesmo se transforma em intérprete e juiz.
1.1.3 Simei
A morte de Simei, também previamente
encomendada por David, singulariza um dos aspectos cruciais dessas mortes
todas: servir de mensagem, de propaganda da nova ordem, ou da transformação na
orientação da ordem davídica. Simei
descendia do antigo rei deposto Saul. David havia exterminado a linhagem de
Saul, mas preservou este descendente como um trofeú. Simei apontara
publicamente as mentiras de David, o seu lado oculto (II Samuel 16:5-14). Isso
feito durante a revolta de Absalão, a maior crise política e pessoal de David. Como seu pai, Salomão preserva Simei por um
tempo, restringindo seus movimentos "Faça uma casa para você aqui em
Jerusalém. Fique morando nela e não saia da cidade. E fique sabendo que , no
dia em que você sair e atravessar a o ribeirão Cedrom, você será morto, e a
culpa será somente sua (I Reis 2:36-37)."
Esta última morte dentro do percurso
inicial de autoafirmação do jovem soberano demonstra os laços estreitos entre o
sanguinário David e o sábio Salomão. Embora a forma base do nome de Salomão se
refira a 'paz', 'união'[1],seus
primeiros atos manifestam expurgos típicos de uma sucessão que se fortalece por
expurgos pontuais. Simei vincula-se a
uma oposição à ordem vigente, uma oposição que brada e se torna pública,
conhecida. David não o matou imediatamente, frente à revolta de Absalão, pois
seria um erro dar audiovisibilidade à oposição naquele momento - lembrar que
Simei havia pronunciado acusações e maldições ao rei e jogado pedras em David e
em seus homens ( II Samuel 12:5-6)".
Após a morte de Absalão, Simei vai atrás
do rei e pede perdão. David contém a fúria assassina de Joabe e seu irmão
Abissai. E promete para Simei: "Eu juro que você não será morto (2 Samuel
19:23)." A mesma boca que pronuncia essa promessa depois demandará de seu
sucessor a morte de seu oponente. As vidas das pessoas ficam nas mãos dos
soberanos, que delas se desfazem quando for necessário e conveniente. Simei é
um sobrevivente, alguém com uma sentença de morte sobre sua cabeça. O
assassinato do rebelde reforça o poder do rei em superar mesmo as fronteiras da
morte. De outro lado, mostra como as palavras e as ações não se sincronizam,
possibilitando a construção de jogos, de uma retórica da atuação de Salomão:
ele afasta de si o ato sanguinário, propõe uma norma que será quebrada pela
vítima potencial, e a pena é aplicada pelo agente do Estado encarregado de
punir com violência os desvios dos súditos.
Em todo caso, Simei reafirma a lógica palaciana de Salomão tanto ao
viver, quanto ao morrer.
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